domingo, 29 de junho de 2014

PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DO DIÁLOGO INTERCULTURAL

                         
No dia 12 de junho, foi realizada, na E.E. Carlos Bratz, mais uma oficina do Programa Escolas Interculturais de Fronteira. Na oportunidade, o professor Lívio Arenhart, abordou o tema "Pressupostos Filosóficos do Diálogo Intercultural", propondo um debate e reflexão com os/as professores/as da escola, na perspectiva de que " a defesa de uma sociedade plural, se tornou uma bandeira de luta das classes populares". A seguir, disponibilizamos um texto, produzido pelo professor Lívio, que poderá subsidiar e ajudar a aprofundar as discussões e estudos sobre o assunto.




                           

                       PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DO DIÁLOGO INTERCULTURAL
                                                    Livio Osvaldo Arenhart

      O diálogo intercultural tornou-se uma exigência de ética social e política da atualidade. Ao longo do século XX, os regimes totalitários e a política neoliberal se revelaram formas de poder que se transmuta em destruição violenta da humanidade e da natureza, evidenciando que a continuidade da vida no globo terrestre está condicionada ao entendimento – no sentido intelectual e ético – entre os seres humanos e destes com a natureza. Se não interrompermos o ciclo da cultura guerreira, iniciado na era dos metais e hegemonizado pelos machos, machinhos e machões de todas as marcas e modelos, não haverá mais tempo/lugar para a esperança. A continuarmos esse ciclo, em breve teremos varrido da face da terra a diversidade biológica e cultural. O capitalismo deu o que podia dar. As necessidades do capital não coincidem mais com as necessidades humanas. 
Então, um primeiro pressuposto para o diálogo intercultural é a opção de classe social, a opção de lutar para que todos os seres humanos tenham o direito a ter direitos, tenham o direito aos recursos necessários para sobreviver, a começar pelo direito ao trabalho. E isso, com base no valor-gentitude, que Kant chamou de dignidade humana e que consta dos princípios das atuais repúblicas. O ser humano, qualquer ser humano, independentemente de suas características empíricas, carrega um valor que não é valor-preço, o que exige dos outros que não o reduzam a mercadoria. O ser humano, qualquer ser humano, por conta de seu valor-gentitude – que o torna equi-valente a qualquer outro, equi-gente – carrega consigo o encargo insubstituível de definir o seu projeto de vida, na linguagem de Kant, é “fim-em-si-mesmo”, proibindo-se aos outros de usá-lo como objeto/instrumento. O arquiconceito da dignidade humana, no neoconstituicionalismo contemporâneo, tornou-se um padrão para pensar e avaliar a cidadania em outro patamar: a condição de cidadão não implica mais, como no modelo político liberal, a subordinação a um Estado. Basta ter nascido de fêmea humana para dever ser considerado titular de direitos, não importando sob quais condições concretas. Ora, essa torção interpretativa da dignidade coincide histórica e contraditoriamente com a desgraça do aumento da miséria: nos anos 60 havia 30 miseráveis para um rico; em 2015, haverá 100. E é indubitável que o exercício da cidadania está condicionado à saída da miséria; que, em economias monetarizadas, somente um ser que ganha dinheiro pode ser sujeito de direitos. 
Portanto, o reconhecimento das diferenças culturais terá de passar pela luta por distribuição de recursos econômicos e culturais que atendam às necessidades humanas. Ao longo da história, as classes dominantes não negaram as diferenças culturais, mas as reconheceram para que os diferentes soubessem bem o seu lugar social e nele se mantivessem. O que está posto como desafio contemporâneo é que esses outros, pelo fato de lutarem ao mesmo tempo por direitos de distribuição e de reconhecimento, tornaram-se intragáveis às classes dominantes (e, no Brasil, inclusive às classes médias, historicamente violentas, ignorantes e regressivas). Então, atualmente, a defesa de uma sociedade plural se tornou uma bandeira de luta das classes populares. O desenho prévio da sociedade do futuro, do ponto de vista das classes dominantes, é o de uma sociedade homogeneizada pela obsessão do lucro. Ou seja, depende dos movimentos sociais e populares resistir ao rolo compressor do império capitalista e, assim, dar suporte e fomento à produção da diversidade cultural e biológica.
Um aspecto importante desse projeto diz respeito à questão do etnocentrismo. Um grupo étnico-idiomático-religioso ameaçado de destruição pelo rolo compressor do império capitalista e pela difusão midiática de sua cultura consumista não tem como sobreviver sem filtrar rigorosamente os modos aceitáveis de pensar, sentir e agir. Por isso, como estratégia de sobrevivência, tenderá a guardar segredos e impor tabus a seus membros. Isso nos permite entender que temos de relativizar a exigência imperial e absoluta do relativismo cultural. O que tem de se problematizar é a lógica do capital que se afirma absoluta e não os modos “estranhos” de vida dos grupos que não são como nós.
Outra coisa importante concerne a sobre o que os diferentes precisarão se entender. Não se há de vasculhar os segredos dos outros para fazer diálogo intercultural. Este deve ser feito de modo a facilitar a resolução conjunta dos problemas comuns. O foco do diálogo intercultural deve ser este: quais são os grandes problemas que temos de resolver em comum? De resto, não se trata de bisbilhotar a vida dos outros. Para a relação entre culturas distintas, vale também o princípio ético da confidencialidade, na contracorrente das práticas invasivas da sociedade de espionagem que é o império capitalista (a invadir o mundo da vida de pessoas e grupos, a pretexto de ameaça terrorista). Naturalmente, a busca de resolução comum de problemas implica negociação de significados, influência recíproca de crenças e desejos. Que esse processo seja mais ou menos conflitivo é previsível e inevitável, mas a opção mesma de entrar em diálogo intercultural carrega consigo a atitude positiva em face dos conflitos, a postura resoluta de administrá-los, em vez de exorcizá-los.
Outro pressuposto do diálogo intercultural é o fato de nós, especialmente na região missioneira de ambos os lados do rio Uruguai, sermos genética e culturalmente híbridos. Com efeito, nossa condição mestiça comum denuncia a incoerência das práticas de discriminação e de estigmatização de pessoas e grupos diferentes de nós. E essa condição mestiça sobrevém a nós como herança e precondição de existência e coexistência. Para podermos estar de bem com a vida, temos de nos esforçar para abraçar essa herança e, naturalmente, melhorá-la naquilo que achamos que deve ser melhorado. Ora, acolher amavelmente nossa condição híbrida equivale a nos assumirmos como irmãos daqueles que são diferentes de nós, mas que, efetiva e ancestralmente, são nossos parentes. 

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