quarta-feira, 13 de agosto de 2014

PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA HERMENÊUTICA DIATÓPICA PROPOSTA POR RAIMON PANIKKAR

                                                                                        

 Livio Osvaldo Arenhart1


Resumo: A hermenêutica diatópica foi proposta por Raimon Panikkar como metodologia de diálogo intercultural. Orientar-se por essa metodologia não se limita a aplicar uma técnica de interpretação. Implica saber operar com algumas distinções conceptuais, que a sustentam e legitimam: conceito/símbolo, logos/mythos, alius/alter, multiculturalismo/interculturalidade. A explicitação e articulação adequada desses pares conceptuais, entre outros, formam o marco categorial pressuposto pela hermenêutica diatópica. 
Palavras-chave: diálogo intercultural; hermenêutica diatópica; mito; alteridade; Direitos Humanos.

Abstract: Diatopic hermeneutics has been proposed by Raimon Panikkar as a methodology of intercultural dialogue. To orient oneself using this methodology doesn't restrict to pursue a technique of interpretation. It implies to know how to operate some conceptual distinctions which base and legitimate them: concept/symbom, logos/mythos, alius/alter, multiculturalism/interculturality. The explanation and the adequate articulation of the conceptual pairs, among others, form the categorical mark presupposed by the diatopic hermeneutics.
Key-words: intercultural dialogue, diatopic hermeneutics, myth, human rights

Introdução
Vários grupos de pesquisa aproximam a questão dos Direitos Humanos da questão do multiculturalismo crítico. Dentre esses grupos, o de Boaventura de Souza Santos e grupo francês Droits de l’Homme et Dialogue Interculturel2, por exemplo, reportam-se à hermenêutica diatópica e ao conceito de equivalentes homeomórficos, propostos por Raimon Panikkar. Supondo que o emprego desses conceitos não se reduza a uma simples técnica de interpretação, convém compreender o quadro de categorias filosóficas que justifica essa proposta. Com efeito, esse marco teórico é produto de uma determinada filosofia hermenêutica, cujo foco principal é o diálogo intercultural. Raimon Panikkar é um dos expoentes dessa corrente filosófica, que se autodenomina “filosofia intercultural”.
O objetivo deste artigo é expor as distinções conceptuais de fundo pelas quais se articula o pensamento de Panikkar e cuja compreensão facilita a incursão em sua obra. A relevância desta consiste no fato de chamar a atenção de seus leitores para o desarmamento cultural e o diálogo intercultural e inter-religioso, como condições necessárias para a solução dos grandes problemas da humanidade e para a urgente construção de um mundo de paz.
Pretende-se aqui tratar não de algum tema específico pensado por Panikkar, mas dos conceitos-ferramenta por mediação dos quais esse autor tem elaborado os seus textos instigantes, conceitos esses que definem menos o conteúdo de pensamento que a forma de pensar, menos o “conteúdo” pensado que o “método” de pensamento, menos as idéias sobre a realidade que os pressupostos filosóficos, notadamente, os antropológicos e epistemológicos.
Presume-se que, em nosso mundo globalizado e multicultural, as questões do diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica sejam relevantes para os pesquisadores e operadores do Direito, particularmente os que se ocupam dos Direitos Culturais.

1. Símbolo e conceito, Mythos e logos
Panikkar distingue a operação de “pensar com símbolos” da operação de “pensar com conceitos”; distingue o “conhecimento simbólico” do “conhecimento conceitual”, o processo cognoscitivo da simbolização do da conceptualização (2006, p. 44-45. 89)3. Segundo ele, em nossa fala e escrita, fazemos uso de “termos conceptuais” e de “símbolos polissêmicos, capazes de expressar as experiências coletivas de um povo” (Id. p. 59)4. 
Para exemplificar essa distinção, cabe aqui ver como ela se aplica à expressão “Direitos Humanos”. No entender de Panikkar, trata-se de uma expressão simbólica, pois diferentemente de um conceito, os Direitos Humanos “são polivalentes e polissêmicos por natureza” (Panikkar, 2004, p. 226). Eles são um símbolo de validade universal em virtude de se basearem em outro símbolo universal, o “simples fato de ter nascido” entre os seres humanos, como ser humano (Id. p. 227).
Para dialogar com as outras culturas, que é o desafio máximo nestes tempos de globalizações5, os conceitos produzidos no interior de nossa cultura não são suficientes. Entre pessoas de culturas distintas, nem sempre é possível uma “comunhão conceptual”. “Por este motivo, é de capital importância o pensamento simbólico, o qual não é objetivo nem subjetivo, mas essencialmente dialogal” (Panikkar, 2006, p. 44). Entre falantes de culturas diferentes, quando se trata de explicar um ao outro, de forma inteligível, os respectivos pontos de vista, a “compreensão recíproca não pode ser conceptual, mas simbólica, o que implica uma certa participação num universo simbólico que não é exclusivamente epistemológico” (Id. p. 46)6. Excelente em seu âmbito próprio, o pensamento científico “causa destruição do universo simbólico das outras culturas quando se extrapola” (Id. p. 99)7.
Paralela e correspondente à distinção entre “conceito” e “símbolo” é a distinção entre logos e mythos. Este último é veiculado pelo símbolo e não pelo conceito. “O que nos abre ao mythos é a consciência simbólica” (Id. p. 79). A consciência simbólica ou mítica permite-nos “ver” as coisas do nosso mundo prático, numa dimensão de abertura prévia ao entendimento lógico, pelo qual podemos “observá-las” e analisá-las. (Id. p. 80). 
Em contraste com a linguagem lógica,  o mythos  caracteriza-se pela polissemia, admitindo uma pluralidade de interpretações, inclusive, interpretações doutrinariamente incompatíveis (Id. p. 111. 162). Mas isso não significa que os mitos aceitem ser manejados arbitrariamente. O mythos é “um fator constitutivo da realidade humana” (Id. p. 130). Uma mudança de mythos implica “uma transformação de nossa visão da realidade e não só a reforma de alguma de nossas idéias”, como é o caso quando, com relativa facilidade, mudamos de logos (Id. p. 87. 110).  Isso, em função de que “eles se apresentam por si mesmos” e nós os aceitamos como evidentes (Id. p. 79. 111)8. Cremos neles de maneira tão natural que os damos por suposto e que, para descobri-los, necessitamos de interlocutores de outra cultura (Id. p. 87. 162). 
Eles constituem a dimensão “em que se funda a inteligibilidade em cada situação determinada” (Id. p. 162). São aquilo “que nos dá a base em que a questão enquanto questão tem sentido”, que nos oferece “o horizonte de inteligibilidade no qual temos necessidade de colocar não importa qual idéia, convicção ou ato de consciência para que possa ser captado pelo nosso espírito” (2000, § 50; 2006, p. 36)9. Constituindo “o horizonte que torna possível a definição das coisas, os mitos estão além de toda definição e não se prestam a nenhuma fundamentação ulterior” (2006, p. 162). O logos filosófico e/ou científico nunca está em condições de operar sem pressuposto algum. Por isso, necessariamente, “toda des-mito-logização carrega consigo uma re-mitização” (2000, §§ 42 e 105)10. Pois o mito é o “lugar da crença em algo..., ainda que depois tenha que intervir o logos para discernir o valor dos respectivos símbolos” (2006, p. 130).
Mesmo distinguindo-se do logos, de modo que não pode ser identificado com ele, o mythos “não pode ser separado” do logos (Id. p. 111. 162; 2000, § 105). O mito é palavra, é narrativa; embora irredutível ao logos, não é incompatível com ele (2000, § 138). Como escreveu E. Carneiro Leão, “ho mythos exprime o destino que se lega historicamente à existência. Por isso, em sua originalidade, todo mito é uma etiologia. A vivência de uma estruturação destinada”; apenas de modo derivado, o mito é “um relato, a expressão daquela vivência” (1977, p. 196)11.  Portanto, podem-se distinguir o mythos e o logos, “mas não os separar, pois um nutre o outro, e toda cultura humana é uma textura de mito e logos [...] eles são como dois fios que se interlaçam para tecer a Realidade” (Panikkar apud Eberhard, 2004, p. 176). Aliás, o mythos, caso não compensado pelo logos do diálogo intercultural, “corre o risco de desembocar no fanatismo”, de resvalar facilmente para o puro e simples subjetivismo (Panikkar, 2006, p. 57. 87). Por conseguinte, a busca da comunhão no mythos não prescinde do logos (Id. p.111)
Se admitirmos que “as culturas jurídicas não são apenas da ordem do logos, mas da ordem do mythos, o que significa ser da ordem das diferenças maiores”, então os operadores e pesquisadores do Direito também não ficarão alheios a essa distinção entre mythos e logos (Eberhard, 2004, p. 175).

2. O diálogo intercultural em sentido próprio não se detém no plano do logos
Panikkar pensa as culturas a partir dos mitos, de modo que cada cultura é “uma galáxia que vive de seu próprio mythos” (2006, p. 34)12; é o “mito englobante de uma sociedade” (2006, p. 36)13. A considerar essa noção de cultura, a comunicação intercultural cumpre ser efetuada pela “comunhão do mythos”; com efeito, esta “nos permite captar o significado do que o outro diz, inclusive quando não compartilhamos seu mundo conceptual” (Id. p. 79). Para compreender outra cultura, “não é suficiente penetrar em seu logos, tem que participar também de seu mythos” (Id. p. 82). Para se obter uma certa sintonia intercultural, não basta a comunhão de idéias e sentimentos, sendo imprescindível a comunhão no mythos (Id. p. 82)14. A fecundidade do diálogo intercultural depende de ir além do simples logos, mas sem destruí-lo, para formar e estabelecer uma conexão com o mythos (Id. p. 145). 
A comunhão no mythos do outro é uma “comunhão em nossa  humanidade” e, por isso, “cria solidariedade”, ainda que não elimine os conflitos (Id. p. 84. 87. 163). 
As fronteiras horizontais de cada cultura estão determinadas pelas culturas dos outros. Já as fronteiras verticais “provêm da própria condição humana” (Id. p. 31). Quando as fronteiras verticais de cada cultura não são levadas em consideração, o diálogo intercultural “corre grande risco de converter-se em um duelo horizontal”, não deixando outra saída que a derrota do outro (Id. p. 32). Ou seja, o diálogo deixa de ser um encontro de dois interlocutores que se escutam reciprocamente, deteriorando-se ao grau de um duelo cavalheiresco ante o tribunal da deusa razão (p. 31). Panikkar é de opinião de que a perda da fé religiosa genuína bloqueia a confiança no outro ser humano, o qual passa então a ser visto como competidor ou inimigo (Id. p. 127).
Além disso, Panikkar acredita seriamente que “religião e cultura são inseparáveis. Logo, diálogo intercultural e diálogo religioso andam juntos” (Id. p. 18). Ou seja, “dado que a alma de toda cultura é a religião, o diálogo intercultural desemboca, em última instância, em um diálogo inter-religioso” (Id. p. 36). E este tem lugar no plano místico, no plano em que “a obscuridade do mythos torna possível a luz do logos”: a mística, que não é autêntica se falta amor, “é o passaporte para transpor as fronteiras culturais” (Id. p. 68. 89)15. Acerca da abertura do diálogo intercultural à transcendência vertical, Panikkar destaca: “o caminho mais curto entre dois corações passa pelas estrelas. A via pacífica passa pelo reconhecimento de que há algo no ser humano que transcende a mera humanidade, que há algo nas culturas que tem vindo das estrelas” (Id. p. 133).
Para um diálogo intercultural fértil também sobre o direito, “não é suficiente estarmos cientes dos processos e lógicas sociolegais das diferentes culturas; é fundamental que se reconheçam suas respectivas visões, horizontes ou universos jurídicos, e seus mitos subjacentes” (Eberhard, 2004, p. 175).
3. O “outro” do diálogo intercultural: de alius a alter
No contexto de suas reflexões acerca da interculturalidade como condição para a paz16, Raimon Panikkar expõe o tema da alteridade. Entre outras coisas, a paz requer “compreensão do outro, o que não é possível sem transcender o próprio ponto de vista, sem interculturalidade” (2006, p. 15). A atitude intercultural implica o compromisso de “valorizar a perspectiva do outro e procurar ser consciente dela, mesmo sem compreendê-la” (Id. p. 14). Essa é uma atitude do filósofo intercultural: “conversa com o outro, que representa outro mundo, outro ponto de vista”, sendo o outro, em cada caso, uma “pessoa viva, fonte de consciência, não uma mente computadorizada” (Id. p. 26). Antes de ser uma relação entre culturas, a interculturalidade “é um encontro entre seres humanos” (Id. p. 69).
O outro como alter pode ser conhecido se pensamos simbolicamente, operação essa que, ao invés de assemelhar-se a uma conquista, constitui um “conhecimento amante ou amor cognoscente”. O diálogo em sentido próprio pressupõe “a superação da ‘epistemologia do caçador’. Ou seja, dessa atividade dirigida para a caça de informações realizada por uma ‘razão instrumental’ separada do rosto do ser humano e, sobretudo, do amor” (Id. p. 54) 17. Ao invés de ser executado como um ato de violência e de contrabando cultural, empunhando o fuzil da razão instrumental, no diálogo intercultural em sentido próprio, o conhecimento se desdobra como amor, de tal modo que nos faculta descobrir “o outro não como aliud (um estrangeiro), mas como um alter (um companheiro)” (Id. p. 144-145). “Para descobrir o tu, eu devo amar o tu, e, vice-versa” (Id. p. 145).  Desse modo, tornamo-nos “capazes de ver o outro não como um ele/ela, mas como um tu, o tu de nosso eu, então a relação é humana. O tu não é um/a ele/ela, nem um eu, o tu é o tu do eu, do eu (verdadeiro) que é o eu do tu” (Id. Ibid.). 
Para deixarmos de ver o outro ser humano e sua respectiva cultura como objetos de conquista, temos que nos mover em direção a ele no plano do pensamento simbólico, plano em que pode acontecer a “união sagrada” de conhecimento e amor, (Id., p. 148). É o “conhecimento amante” ou “amor cognoscente” que determina a distinção entre essas duas visões do outro: o outro como alter – companheiro, próximo – e não como alius – estrangeiro, estranho (Id. p. 76. 87-88. 144-145). O esforço para integrar conhecimento e amor faculta a valorização consciente da perspectiva do outro, mesmo sem compreendê-la; “não é possível valorizar corretamente o ponto de vista do outro sem o conhecimento de sua cultura, conhecimento a que não se pode chegar sem amor ou, ao menos, sem simpatia” (Id. p. 14. 73)18.
Quanto a essa questão, Panikkar insiste em que evitemos a forma de pensar que ele chama “dialética”, referindo-se à operação de oposição entre termos contraditórios, no caso, “eu” versus “não-eu” 19. Como explicou magistralmente Carlos Cirne-Lima, duma negação indeterminada de um termo – ou oposição de termos contraditórios, cuja soma sempre dá a totalidade das coisas existentes e possíveis –, como é o caso de “eu” e “não-eu”, nada de positivo resulta, apenas destruição de um dos pólos (1997, p. 124-128)20. A filosofia intercultural “nos ajuda a compreender que o outro não é um aliud mas um alter e que o não-A esconde uma multiplicidade (B, C, D...) que não pode ser enfiado no mesmo saco” (Panikkar, 2006, p. 131).
No círculo vital entre conhecer-o-outro e amar-o-outro, o conhecimento do outro determinado e singular possibilita a descoberta da própria identidade. No processo cognoscitivo-amoroso da relação interpessoal, as identidades, a minha e a do outro, são engendradas como diferença. Como relação com o outro, a diferença pode ser pensada como “diferença além de”21, “diferença contra”22 e “diferença no interior de” (Burbules, 2003, p. 168-178). É notório que Panikkar pensa a relação com o outro em base ao conceito de “diferença no interior de”: ser outro é ser parte do que eu sou23.  A “diferença no interior de” é “uma parte daquilo que é”; este conceito “cria espaço para compreender as formas pelas quais a diferença é vivida; como as pessoas expressam as diferenças, brincam com elas, transgridem-nas, cruzam as fronteiras entre elas” (Burbules, Op. cit. p. 175-176). Nas palavras de Panikkar, “se o outro ser humano é meu próximo, outro (alter), então eu posso conhecer o outro como a outra parte de mim mesmo e complemento de meu auto-conhecimento” (2006, p. 76). À medida que avança o diálogo com pessoas de outra cultura, esta “começa a converter-se no outro pólo da nossa e talvez em um complemento” (Id. p. 38).  Em sentido próprio, a nossa relação com o outro é uma relação humana “se somos capazes de ver o outro não como um ele/ela, mas como um tu, o tu de nosso eu” (Id. p. 145). Significa que “o outro, como alter, é ‘parte’ do eu” e, conseqüentemente, “conhecer o outro é conhecer a si mesmo” (Id. p. 147). “Se não conheço o outro não poderia conhecer a mim mesmo” (Id. p. 78). No diálogo propriamente dito, “o outro... nos revela nosso próprio mito” (Id. p. 87-88)24. O diálogo em sentido próprio “é constitutivo do homem mesmo”, como homo loquens  (Id. p. 69. 147). O ser humano “enquanto tal é um ser dialogal..., fala para entender os outros e para entender-se a si mesmo, mas também para ser entendido pelos outros” (Id. p. 47. 69). 
A atitude dialógica pode surgir quando conseguimos resistir à “tentação de crer (pessoal ou culturalmente) que somos auto-suficientes. A abertura ao outro nasce da experiência de nossa contingência” (Id. p. 147). Com efeito, a auto-suficiência nos impede de reconhecer o outro “como um sujeito, como uma fonte de conhecimento”, vendo unicamente “como um objeto de nossa investigação” (Id. Ibid.). “Só reconhecendo nossos limites podemos não absolutizar nossas convicções e dar lugar à escuta e à eventual compreensão do outro” (Id. p. 31-32). Ao ver de Panikkar, a auto-suficiência mencionada é determinada pelo mito do moderno individualismo ocidental, mito esse que impede muitos idiomas europeus de distinguirem entre duas palavras latinas alius-a-ud e alter-a-um, ambas traduzidas como “outro” (Id. p. 76).
O princípio de relativização, inerente à interculturalidade, des-absolutiza as descobertas de uma cultura, isto é, “considera-as válidas e legítimas no seio de uma determinada cultura e dentro dos parâmetros admitidos por ela; numa palavra, dentro do mito englobante de tal cultura” (Panikkar, 2000, § 82). A abertura à interculturalidade “desestabiliza-nos, contesta convicções profundamente enraizadas... Diz-nos que nossa visão de mundo e, portanto, nosso mundo mesmo não são únicos” (2006, p. 109). Por conta disso, “permite-nos crescer, ser transformados; estimula-nos a tornar-nos mais críticos, menos absolutistas e amplia o campo de nossa tolerância. Ademais, faz-nos descobrir as raízes próprias de nossa cultura” (Id. Ibid.). Esse é o caso, precisamente porque o diálogo intercultural no sentido mais radical e fecundo se realiza com os estrangeiros, os refugiados, os imigrantes (Id. p. 30).

4. O perspectivismo e o método do diálogo intercultural
Como todos os hermeneutas, Panikkar dá ênfase ao caráter perspectivista de qualquer forma de conhecimento humano. “Não existe perspectiva global. Toda perspectiva é limitada” (Id. p. 14). Essa condição epistemológica se liga à condição antropológica de que “não existem universais humanos”, já que o sentido dos invariantes humanos do comer, do dormir etc. “não é o mesmo nas distintas culturas”; ou seja, “o invariante humano é percebido somente dentro de um universo cultural” (Id. p. 17).
A partir desse pressuposto, ao invés de privilegiar uma linguagem, religião e/ou cultura, a filosofia intercultural vê o “pensamento único” como um “pecado de lesa humanidade” (Id. p. 17. 65). Fornét-Betancourt esclarece que a filosofia da interculturalidade interpreta como “assalto totalitário à multiplicidade e à pluralidade dos mundos de vida da gente” o estilo neoliberal de globalização, já que se trata de “uma estratégia econômico-militar para apoderar-se do mundo plural da humanidade” (2004, p. 16). Mas esta e outras visões monolíticas da coexistência humana no planeta Terra podem ser evitadas pela interculturalidade (Panikkar, 2006, p. 17). Pois “existe sempre a possibilidade de um intercâmbio e de uma ampliação de perspectivas” (Id. p. 14). O diálogo intercultural aponta precisamente para isso. Neste caso, o respeito à dignidade humana, que exige o respeito cultural e o conhecimento mútuo, exige que resistamos à tentação de impor aos outros nossa cultura como modelo de convivência humana (Id. p. 18).
Manifestamente, “a compreensão de outra cultura nunca é completa, porque... seus mitos fundamentais podem ser incompatíveis com os nossos” (Id. p. 86). García Canclini confirma essa tese de Panikkar, argumentando que a autonomia do sujeito requer a aceitação de que há coisas do outro que não se pode compreender25. Essa aceitação confere igualdade aos sujeitos e permanência à relação. Logo, é condição de cidadania que se tornem “convivíveis diferenças que não podem ser reduzidas a um denominador comum” (García Canclini, 2005, p. 179. 242).
Acresce, por conseqüência, que não pode existir uma linguagem intercultural ou universal. A filosofia intercultural reconhece não estar em condições de dar uma resposta “multicultural” a problemas que se pressupõem “universais”, mas “se interroga sobre a pretendida universalidade dos próprios problemas” (Panikkar, 2006, p. 36. 65). E como toda interpretação é nossa interpretação, “não há uma plataforma multicultural desde a qual se pode alcançar uma interpretação de culturas” (Id. p. 75). Não possuímos um critério absoluto em base ao qual seja possível o vínculo entre as distintas culturas do mundo (Id. p. 44). Consenso cultural “só é possível no interior de um mito e cada cultura vive em seu mito” (Id. Ibid.). 
A interculturalidade “é o terreno em que os mitos se encontram e se entrecruzam”; em tempos concretos e espaços limitados, ela pode engendrar “mitos transculturais” (Id. p. 85. 59) 26. Ela “nos oferece uma via intermédia entre o absolutismo da defesa dos valores universais (ética mundial, mercado comum, democracia planetária, alguns direitos globais) e o não menos absoluto rechaço de tais valores por não considerá-los universais” (Id. p. 85-86). Ela exige “compreender a linguagem do outro sem necessidade de traduzir... pensar no idioma do outro” (Id. p. 64). É questão de comunicação e de fecundação mútua e não simplesmente de tradução (Id. p. 63). 
O método da filosofia e diálogo interculturais “é o diálogo como abertura ao outro”, no plano do pensamento simbólico (Id. p. 44). O caminho que se há de percorrer tem de ser estabelecido, em parceria e desde o ponto de partida, pelos interlocutores, pois “as regras do diálogo não se pressupõem unilateralmente nem se dão por suposto a priori sem tê-las estabelecida no próprio diálogo” (Id. p. 49. 75)27. A interculturalidade “depende do critério do próprio diálogo intercultural em sua realização de fato. O critério é intrínseco ao próprio diálogo e seus intérpretes são os próprios dialogantes” (Id. p. 45).

5. Hermenêutica diatópica, equivalentes homeomórficos e Direitos Humanos
Interpretar e comparar textos, a partir da comparação de seus respectivos contextos, por si só, não é ainda o método adequado ao diálogo intercultural. Panikkar pondera que é preciso conhecer o pretexto que tornou possível um texto a ser interpretado28, e a condição para isso é compreender os lugares culturais –  os topoi – e, a partir deles, as intenções que têm permitido a emergência dos distintos contextos e textos a serem interpretados, uma vez “não se pode pressupor a priori que sejam iguais” (2000, § 117). “Não é legítimo supor que os problemas das distintas culturas sejam os mesmos (só que com distintas respostas)”; de cultura para cultura, as próprias questões, colocadas a partir dos respectivos contextos, diferem entre si, anteriormente à obtenção de distintas respostas nos textos (2000, § 118). Em função dessa problemática, Panikkar propõe a hermenêutica diatópica. 
Como foi visto anteriormente, ele aposta na possibilidade da comunicação humana num plano que precede os textos, movidos pela razão, e os contextos, movidos pela vontade. Segundo ele, “a textura humana é anterior a texto e contexto e não é fruto de nossa razão nem de nossa vontade. Nos está dada, é dom, encontramo-la, reconhecemo-la, aceitamo-la ou nos rebelamos contra ela, mas ela está aí como matéria prima” (2000, § 119). Nós só podemos integrar uma única cultura em nós mesmos e só podemos compreender o mundo a partir das categorias de nossa própria cultura, “mas talvez seja possível criar a possibilidade de uma integração mais ampla e mais profunda, abrindo-nos, no diálogo, aos outros”; em outros termos, “pode não ser impossível mantermos um pé em uma cultura e um pé em outra” (2004, p. 220). A expressão “hermenêutica diatópica” aponta para uma tarefa interpretativa em interlocução com seres humanos de outra cultura que a nossa, com um pé em sua cultura e, naturalmente, mantendo um pé em nossa cultura. 
Boaventura de S. Santos explica que os diferentes universos de sentido, que são cruzados e mesclados via diálogo intercultural, 
consistem em constelações de topoi fortes. Os topoi são lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos (Santos, 2004, p. 255-256). 
Na nossa cultura, os Direitos Humanos constituem um desses lugares comuns retóricos a partir dos quais nós interpretamos o mundo. Como escreve Panikkar, são “uma janela através da qual uma cultura determinada concebe uma ordem humana justa para seus indivíduos” (2004, p. 210). Para podermos ver a janela através da qual nós vemos, necessitamos da “ajuda de outra cultura, que, por sua vez, enxerga através de outra janela. Eu creio que a paisagem humana vista através de uma janela é, a um só tempo, semelhante e diferente da visão de outra” (Id. Ibid.)29. Saliente-se que os Direitos Humanos constituem uma janela entre outras, para a realidade humana (Id. p. 206). Pois, notoriamente, os seus pressupostos filosóficos – natureza humana universal, dignidade do indivíduo e ordem social democrática – pertencem à tradição ocidental30. 
Como é visível no símbolo dos Direitos Humanos31, a proposta metodológica de hermenêutica diatópica contém a noção de equivalentes homeomórficos. Esta noção é considerada por Panikkar como um primeiro passo para a interculturalidade. Procurar nas outras culturas os equivalentes homeomórficos de valores e símbolos é uma forma de tornar efetiva a atitude intercultural (2000, § 21; 2006 p. 86). Buscar em outras culturas os equivalentes homeomórficos do símbolo “Direitos Humanos” significa buscar nelas as possíveis noções equivalentes a “Direitos Humanos”, como aqueles símbolos (não necessariamente conceitos, nem muito menos um só) que desempenham uma função análoga à dos Direitos Humanos em nossa cultura (2000, § 21). Pelo visto, para encontrar essas noções, “temos que conhecer os respectivos contextos que, em certa medida, são compartilhados pelos mitos das distintas culturas” (2006, p. 82).
Os equivalentes homeomórficos “não são meras traduções literais, nem tampouco traduzem simplesmente o papel que a palavra original pretende exercer” (2000, § 21). No exemplo dos Direitos Humanos, os seus equivalentes homeomórficos, em outras culturas, “apontam para uma função equiparável ao suposto papel” dos Direitos Humanos na nossa cultura. Trata-se, pois, não de um equivalente conceptual, mas funcional. Não se busca a mesma função (que os Direitos Humanos exercem), mas “aquela equivalente à que a noção original exerce na correspondente visão de mundo” (Id. Ibid.)32. 
Um possível símbolo homeomórfico correspondente à noção ocidental de Direitos Humanos é o Dharma hindu. Dharma “é o que sustenta, dá coesão e, portanto, força, a uma dada coisa, à realidade” (Panikkar apud Santos, 2004, p. 258). No mundo cultural em que a noção de Dharma é central e quase onipresente, a preocupação dominante é “avaliar o caráter dharmico (correto, verdadeiro, consistente) ou adharmico de qualquer coisa ou ação no todo da realidade, colocando em segundo plano o direito do indivíduo  (Id. Ibid.). O Ocidente moderno enfatiza a noção de Direitos Humanos como referência simbólica no esforço de construção política de uma sociedade justa. “Para ter uma ordem dharmica (direita, verdadeira, coerente, coesa...), a Índia clássica enfatiza a noção de svadharma, o Dharma inerente a cada ser” (Panikkar, 2004, p. 230-231).
De acordo com Boaventura de S. Santos, é possível ensaiar a hermenêutica diatópica “entre o topos dos Direitos Humanos e o topos de Umma na cultura islâmica”, noção que se refere sempre à “comunidade étnica, lingüística ou religiosa de pessoas que são objeto do plano divino de salvação” (Santos, 2004, p. 259).
Tanto o Dharma hindu quanto o Umma islâmico colocam em questão o pressuposto individualista da concepção ocidental dos Direitos Humanos, evidenciado na nossa dificuldade em aceitar direitos coletivos (Santos, 2004, p. 260). Inversamente, os Direitos Humanos servem de referência simbólica para denunciar a fraqueza das culturas hindu e islâmica no que diz respeito ao não-reconhecimento da irredutível dimensão individual do sofrimento humano (Id. Ibid.; Panikkar 2004, p. 235).   
Essas idéias são suficientes para demonstrar a validade e a operacionalidade da hermenêutica diatópica, posta a serviço do diálogo intercultural, cuja condição sine qua non é o reconhecimento de incompletudes mútuas (Santos, 2004, p. 260). Posto que ninguém tem acesso direto ao universo total da experiência humana, que não dispomos uma teoria endógena capaz de unificar as sociedades contemporâneas, que nenhuma teoria imposta ou importada pode simplesmente cumprir esse papel e que a cultura de paz se tornou condição indispensável para a sobrevivência da humanidade, é imperativo humano de nossa época “uma fecundação mútua de culturas” (Panikkar, 2004, p. 228. 235).  Ao ver de Panikkar, urge que as “culturas não-ocidentais” criem espaço para si próprias e “formulem suas próprias visões homeomórficas correspondentes ou opostas aos ‘Direitos’ ocidentais”; para se tornar efetiva essa condição indispensável de sua sobrevivência, “é fundamental o papel de uma abordagem filosófica intercultural” (Id. p. 237). 
Finalmente, cumpre frisar que têm sido levantadas objeções à exigência metodológica do reconhecimento da incompletude das culturas postas em interlocução.  Uma delas recebeu de Boaventura de S. Santos a formulação que segue: a idéia de incompletude cultural seria “um instrumento perfeito de hegemonia cultural e, portanto, uma armadilha quando atribuída a culturas subordinadas”, pois somente culturas poderosas, vencedoras e completas poderiam se auto-declarar incompletas sem com isso correr o risco de descaracterização ou dissolução. Muitas culturas dos povos indígenas das Américas, da Austrália, da Nova Zelândia, da Índia, etc. foram tão agressivamente amputadas e descaracterizadas pela cultura ocidental que recomendar-lhes agora a adoção da idéia de incompletude cultural, como pressuposto da hermenêutica diatópica, seria um exercício macabro, ainda que as intenções sejam emancipatórias (Santos, 2004, p. 267). Esta problemática remete-nos para pesquisas empíricas sobre a interculturalidade, a que tem se dedicado, por exemplo, Néstor García Canclini, em sintonia com os pressupostos da filosofia intercultural.

Referências
BURBULES, Nicholas C. “Uma gramática da diferença: algumas formas de repensar a diferença e a diversidade como tópicos educacionais”. In: GARCIA, Regina Leite & MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa (Organizadores). Currículo na contemporaneidade: incertezas e desafios. São Paulo: Cortez, 2003.
CIRNE-LIMA, Carlos R. V. Dialética para principiantes. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
EBERHARD,Christoph. Direitos humanos e diálogo intercultural: uma perspectiva antropológica. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 159-203.
FORNÉT-BETANCOURT, Raú. A Filosofía Intercultural frente a los Desafios de la Globalización. In: SILVA, Neusa Vaz e & BACK, João Miguel (Org.). Temas de Filosofia Intercultural. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004. p. 15-19.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 4. ed. Editora UFRJ, 1999.
________. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 1989.
PANIKKAR, Raimundo. Paz e Interculturalidad: una reflexión filosófica. Barcelona: Herder, 2006.
________. Seria a noção de direitos humanos um conceito universal? In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 205-238.
________. Religión, filosofia y cultura (2000). http://them.polylog.org/1/fpr-es.htm . Consultado em 17/10/2007.
SANTOS, Boaventura de Souza. Por uma concepção multicultural dos Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 239-277).
SANTOS, Luciano Costa. Interculturalidade no pensamento latino-americano contemporâneo: contribuições a partir de Juan Carlos Scannone. In: SILVA, Neusa Vaz e & BACK, João Miguel (Org.). Temas de Filosofia Intercultural. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2004. pp. 203-211.

Um comentário:

  1. Excelente texto, amigo!
    Acrescentarei no descobrimento sobre uma tal de "Teoria do Espelhamento" presente em diversos ensinamentos de ícones da humanidade.

    http://aestradadoum.blogspot.com.br/2016/07/teoria-do-espelhamento-delineamentos.html

    Grande abraço!

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