A unidade na diversidade como horizonte utópico do
diálogo intercultural na prática pedagógica libertadora, de acordo com Paulo
Freire
Livio Osvaldo Arenhart
Amabilia Beatriz Portela Arenhart
Eu não poderia escrever em defesa
do oprimido sendo racista,
assim como eu não poderia ser um
machista (FREIRE,
2001, p.62).
- Introdução
O reconhecimento do outro,
articulado à exigência ética da redistribuição, é um dos temas políticos,
culturais e pedagógicos mais relevantes da atualidade (FRASER, 2002; HONNETH,
2003; HABERMAS, 2004). A sua importância teórica se deve à subjetivação e
mobilização sócio-política das nações colonizadas, das mulheres, dos negros, dos
índios, dos homossexuais, dos portadores de sofrimento psíquico/mental, dos
idosos etc. (TOURAINE, 2002). Este texto visa a mostrar como o já clássico
pedagogo Paulo Freire tratou desse tema. Até início da década de 1980, não
faltou quem o acusasse de não levar suficientemente a sério aqueles marcadores
sociais que não fossem o de classe.
Em função dessa objeção à sua obra político-pedagógica, em alguns de seus
escritos, desde Por uma pedagogia da
pergunta, publicado em 1985, até a terceira carta de Pedagogia da indignação, escrita poucos dias antes de morrer,
Freire procura esclarecer seu ponto de vista a respeito dos (sócio-culturalmente)
“outros”, a cujo reconhecimento e empoderamento a sua pedagogia pode servir.
- Diferença,
tolerância e indignação
Na primeira carta de Pedagogia da indignação, escrita em janeiro
de 1997, já no ano de sua morte, emitiu o enunciado
sociológico nenhum pouquinho estranho à sua trajetória pedagógica, política
e teórica: “continuo reconhecendo a existência das classes sociais” (FREIRE, 2000,
p.49). Mas na segunda carta, escrita em abril do mesmo ano, afirmou que, eticamente, devia testemunhar o seu “respeito
à dignidade do outro ou da outra” (FREIRE, 2000, p.55). No texto postumamente
publicado em Pedagogia da tolerância (2004)
e que fora escrito para ser e acabou não sendo a terceira carta de Pedagogia da indignação, o respeito à
dignidade do/a outro/a é assimilado ao conceito de tolerância como virtude da
convivência com o diferente – não com o inferior! –, como “uma das qualidades
fundantes da vida democrática” (FREIRE, 2004, p.23-24).
A propósito, convém lembrar que já no primeiro de seus grandes escritos, em
1959, Freire vê problema no fanatismo e, por isso, propõe o desenvolvimento da
consciência autocrítica através da conversação (FREIRE, 2003, p.38). Quase no
fim de sua vida, afirma que a tolerância em sentido próprio exige de mim “que
respeite o diferente, seus sonhos, suas ideias, suas opções, seus gostos, que
não o negue só porque é diferente” (FREIRE, 2004, p.24). Na experiência da
tolerância assim compreendida, diz, “aprendo com o diferente” (Id. Ibid.). Em A educação na cidade, o autor define a
tolerância como a “capacidade de conviver com os diferentes para lutar com os
antagônicos” (FREIRE, 1999, p.54).
Ainda na segunda carta de Pedagogia da Indignação, esse respeito é
exemplificado pelo reconhecimento de que os quilombos tanto quanto os
camponeses das ligas e os sem-terra de hoje, “todos em seu tempo, ontem,
anteontem e agora, sonharam e sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na
imperiosa necessidade da luta na feitura da historia como ‘façanha da liberdade’”
(FREIRE, 2000, p.60).
Na terceira carta publicada em Pedagogia da indignação, escrita em 21
de abril, a propósito do falecimento do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos,
cujo corpo fora incendiado por um grupo de rapazes enquanto dormia numa parada
de ônibus em Brasília, Freire escreveu: “Fico a pensar... a posição do pobre,
do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste
pensar” dos moços que brincam de matar índio. Nesse seu pensar perplexo, onze
dias antes de morrer, Freire suspeita que o
modo desgentificador de pensar daqueles que brincam de matar índio é reforçado
em muitos momentos da experiência escolar (2000, p.66).
- Ética
universal, direitos humanos e luta dos oprimidos
A partir disso, formula uma
advertência: “Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a
vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher não
estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos
outros” (Id. p.67). E advoga a favor da luta “pelos princípios éticos mais
fundamentais como o respeito à vida...” (Id. p.66-67). Em outro texto, escrito
em 1996, explica que “faz tão parte da ética universal do ser humano a luta em
favor dos famintos e destroçados nordestinos, vítimas não só das secas, mas,
sobretudo, da malvadez, da gulodice, da insensatez dos poderosos, quanto a
briga a favor dos direitos humanos, onde quer que ela se trave” (2000,
p.129-130).
No que tange ao discurso dos
direitos humanos, Freire se preocupa com a interpretação ambígua permitida por esse
discurso abstrato. Por exemplo, “para o professor reacionário, a Educação e os
Direitos Humanos têm a ver com a educação da classe dominante que aí está...”
(2001, p.96); “para um professor elitista, por exemplo, a Educação em Direitos
Humanos tem a ver com o tratamento fidalgo do conhecimento...” (Id. p.97). Não
obstante, Freire diz acreditar no projeto de Educação em Direitos Humanos, ressalvando
que “a compreensão dos direitos humanos e da educação depende de como eu me
vejo no mundo politicamente, depende de com quem eu estou, a serviço de quem e
serviço de que eu sou um educador” (Id. p.97). Assim, por exemplo, “para um
professor progressista a discussão sobre o ato de conhecer se apresenta como um
direito dos homens e mulheres das classes populares, que vêm sendo proibidos e
proibidas de exercer este direito, o direito de conhecer melhor o que já
conhecem, porque praticam, e o direito de participar da produção do
conhecimento que ainda não existe” (Id. p.97). Quanto a esse tema, a posição
política de Freire é a de que, na perspectiva da justiça, a educação para os
direitos humanos é aquela que “desperta os dominados para a necessidade da
briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria,
rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à
reinvenção do poder” (Id. p.99). Em outras palavras, “implica uma participação
cada vez maior, crescente, crítica, afetiva, dos grupos populares” (Id. Ibid.).
Implica também o “direito de ingerir no processo de produção, o direito de
dizer não, não é isso que se tem que produzir...” (Id. p.100).
A propósito dos 500 anos de invasão
da América, em abril de 1992, Freire escreveu que a melhor comemoração seria
“homenagear a coragem, a rebeldia, a decisão de brigar, a bravura, a capacidade
de lutar contra o invasor; a paixão pela liberdade, de índios e índias, de
negros e negras, de brancos e brancas, de mamelucos, que tiveram seus corpos
rasgados, seus sonhos despedaçados, suas vidas roubadas” (2000, p.74). Nenhum
dominador prescinde de “triturar a identidade cultural do dominado” (2004,
p.25). Em contrapartida, a horrorosa experiência colonial nos ensina que os
dominados não se conformam diante das injustiças, nos ensina que “somos capazes
de decidir, de mudar o mundo, de melhorá-lo” (2000, p.75).
- Identidade
e alteridade socioculturais e método pedagógico
Um dos textos em que Freire enfrenta
diretamente a questão do reconhecimento do outro é “Educando o educador” (2001,
p.55-83), originariamente publicado sob o título A Response, na obra coletiva Mentoring
the Mentor, em 1997, em New York, pela editora Peter Lang. Nesse trabalho
do pensamento pedagógico, quando trata do método, Freire advoga que o educador
democrático precisa “saber como ouvir uma criança negra com a linguagem
específica dele ou dela com a sintaxe específica dele ou dela, saber como ouvir
o camponês negro analfabeto...” (2001, p.58). Cada outro em seu contexto e modo
de ser singular, quanto aos aspectos de gênero (ele/ela), de cor (negro), de
classe social (pobre, camponês), de nível de domínio operatório da língua
(analfabeto), de particularidade idiomática (sintaxe específica). A propósito do
último item, vale a pena retomar a conferência sobre “Direitos humanos e
educação libertadora” e ver como o autor em questão exemplifica o caráter não-neutro da sintaxe: intencional
e astutamente, Freire usa a expressão “nós, educadoras”, dando a entender aos homens o quanto é ruim as mulheres serem
envolvidas na mentira da locução usual “nós, os educadores”, fornecendo, dessa
forma, um exemplo de “sintaxe machista que pretende convencer as mulheres que
dizendo ‘nós, os educadores’ eu esteja incluindo as mulheres” (2001, p.100).
Ao tratar da questão do
reconhecimento do outro, não escapa a Freire o princípio pedagógico proclamado
em seus primeiros escritos, particularmente em Pedagogia do Oprimido, a saber, que os educadores democráticos,
para falar com os pobres, devem se dispor a ouvir os pobres em sua expressão
singular e concreta. Coerente com esse princípio pedagógico é a proposta de “um
profundo respeito pela identidade cultural dos alunos e das alunas”, o qual
“implica respeito pela linguagem do outro, pela cor do outro, o gênero do
outro, a classe do outro, a orientação sexual do outro, a capacidade
intelectual do outro”, acrescido da “habilidade para estimular a criatividade
do outro”, tudo isso, em cada caso, no respectivo contexto social e histórico (FREIRE,
2001, p.60). A rigor, na perspectiva democrático-popular, um educador “que não
seja sensível à linguagem popular, que não busque intimidade com o uso das
metáforas, das parábolas no meio popular, não pode comunicar-se com os
educandos, perde a eficiência, é incompetente” (FREIRE, 2003, p.55).
Em Pedagogia
da Autonomia, Freire trata da identidade e da diferença. Propõe que os/as
professores/as assumam sua identidade cultural. A assunção de nós mesmos não
significa a exclusão dos outros, pois é precisamente a outredade do tu “que me faz assumir a radicalidade de
meu eu” (FREIRE, 2006, p.41). O respeito à identidade cultural dos educandos,
em sua dimensão individual e de classe, “é absolutamente fundamental na prática
educativa progressista” (Id. p.42). Esse desafio, rodeado de tensões, não é uma
questão de mero treinamento e tem a “ver diretamente com a assunção de nós
mesmos por nós mesmos” (Id. p.42). Não é ignorando ou negando a minha história
triste que vou me libertar relativamente a ela. Não é desconsiderando as
trajetórias de vida dos educandos que podemos ajudá-los a dar sentido à sua vida.
A retomada compreensiva da vida (individual e coletiva) pregressa, além de
trazer à memória de nosso corpo consciente a razão de ser de muitos dos
procedimentos do presente, pode nos ajudar “a superar marcas suas” (2000,
p.75). Assim, por exemplo, “os quilombos, momento exemplar da luta dos
conquistados (do período colonial), se repetem hoje nas lutas populares no chão
da América”, expressando a inconformidade diante das injustiças e o gosto de
liberdade (Id. p.75-76). Neste ponto, Miguel Arroyo subscreve a posição de Paulo
Freire: “O projeto educativo e social deve estar submetido à lembrança. Deve
levar em conta o peso do passado no presente e no futuro.” (ARROYO, 2004, p.316).
Sem dúvida, nós educadores e educadoras devemos guiar-nos pela esperança de
futuro para nossos alunos. Mas, igualmente, devemos nos deixar guiar pela
memória do passado de opressão, precisamente “para não cairmos em uma
idealização abstrata do futuro” (Id. p.318). Uma pedagogia comprometida com um
futuro mais humano está condicionada a uma “reconstrução do passado vivido ou
mal vivido pelas gerações do passado. Passado mal vivido pelo grupo, pelos
pais, avós e que teima em se projetar nos filhos no presente, anunciando que
persistirá no futuro” (Id. Ibid.). Na linguagem do próprio Freire, para que o
oprimido possa romper com a ambiguidade dramática que ele vive por sentir-se
profunda e simultaneamente repelido e atraído pelo opressor, ele precisa
“assumir a sua vida conflitiva” (FREIRE, 2004, p.29). E o melhor caminho para
isso é autobiografar-se nos círculos de
cultura conforme a proposta metodológica de Freire desde os seus primeiros
trabalhos.
- A
unidade na diversidade – como horizonte utópico do diálogo intercultural
na prática pedagógica libertadora – e a positividade das manhas culturais
Várias vezes, Paulo Freire se refere
positivamente às manhas culturais dos oprimidos como expressões de resistência
cultural às condições de opressão sofridas (FREIRE, 2000, p.81; 2006, p.78).
Outra vez exemplifica: “O sincretismo religioso afro-brasileiro expressa a
resistência e a manha com que a cultura africana escrava se defendia do poder
hegemônico do colonizador branco” (FREIRE, 2000, p.81). Em torno de 500 anos,
negros e índios se viram obrigados a ser manhosos. Freire aposta que seríamos
levados a considerar “métodos pedagógicos” as manhas dos oprimidos à medida que
fôssemos capazes de compreender o papel delas na totalidade da forma cultural
do grupo oprimido (FREIRE, 2004, p.32).
Paulo Freire já havia tratado da
importância de sair ao encontro dos outros e suas respectivas culturas, para
descobrir o segredo de nós mesmos (autoconhecimento) em Por uma pedagogia da pergunta, em diálogo com Antônio Faundez (FREIRE
& FAUNDEZ, 1985, p.85ss.). Ele iniciou essa reflexão pontuando que “a decantada
multiculturalidade de certas sociedades não existe. Para que realmente houvesse
multiculturalidade, seria necessário que houvesse uma certa unidade na
diversidade”, a qual “pressupõe o respeito mútuo das diferentes expressões
culturais que compõem essa totalidade” (Id. p.88).
Na sequência do diálogo com Faundez,
reporta-se a uma conversa que tivera com os líderes da revolução sandinista na
Nicarágua sobre como deveriam fazer para incorporar os índios... à revolução
democrática sem desrespeitá-los, inclusive quanto à sua língua. Freire diz ter
orientado os jovens alfabetizadores a conversarem com os índios sobre a
revolução e sobre a sua intenção de alfabetizá-los em seu próprio idioma, sem
deixar de ouvir deles o que têm a dizer sobre a revolução e “quais os seus
sonhos e suas esperanças” (Id. p.89).
Antes disso, na África, Freire havia
descoberto o “Outro como cultura étnica”. Aprendera ali a respeitar a
cultura-outra. Nas Cartas a Guiné-Bissau
propusera que uma pedagogia na África deveria levar em alta consideração os
elementos culturais africanos, tais como o idioma, o modo de falar, a
expressão, o gesto, a dança.
Essas cartas estampam a insistência em que
a disposição para o diálogo pedagógico e intercultural deve expressamente visar
à reinvenção da cultura e da linguagem, tanto quanto à reinvenção do poder,
posto que uma das dimensões mais sérias da experiência herdada dos oprimidos é
concepção elitista do conhecimento (Id. p.94-96).
Os educadores democráticos devem
incorporar à sua compreensão da realidade social “a maneira como as massas
populares reagem e se veem em sua relação com o contexto”, devem “deixar-se
molhar completamente pelas ‘águas culturais’ das massas populares, para poder
senti-las e compreendê-las” (Id. p.109).
Na obra citada, retoma-se a
preocupação pedagógica enfatizada já em Pedagogia
do oprimido, qual seja, a de que a “sombra” do opressor/colonizador é muito
difícil de ser exorcizada da intimidade dos oprimidos/colonizados (Id. p.111).
A descoberta e o diálogo com o culturalmente
outro é possível porque “somos iguais e diferentes a um só tempo” (Id. p.116).
Paulo Freire testemunha isso particularmente quanto à sua relação com as
comunidades africanas em que atuou como educador. Já nas páginas iniciais das Cartas à Guiné-Bissau diz que o seu
primeiro encontro com a África foi um reencontro consigo mesmo, com o Brasil.
Ele diz ter visto, entre outras coisas, “o gingar do corpo das gentes andando
nas ruas, seu sorriso disponível à vida; os tambores soando no fundo das
noites; os corpos bailando e, ao fazê-lo, ‘desenhando o mundo’; a presença,
entre as massas populares, da expressão e sua cultura que os colonizadores não
conseguiram matar” (FREIRE, 1978, p.13-14). Quando de volta ao Brasil, em 1982,
Freire gostava de lembrar que viu na África “como o africano fala de modo geral
com o corpo inteiro”, necessitando de um bom espaço para falar “porque
dramatizava a história toda” (FREIRE, 2004, p.49).
- A
utopia da unidade na diversidade e o bilinguismo na educação popular
Provocado por Faundez, em Por uma pedagogia da pergunta, Freire detalha
seu ponto de vista acerca do espinhoso problema do bilinguismo na política
cultural dos povos colonizados, pelos portugueses por exemplo. Ele diz que,
neste caso, seria ingênuo negar totalmente a importância da língua portuguesa.
Propõe que, na formação dos grupos étnicos cuja língua materna não é o
português, dever-se-ia subtrair, o quanto antes, da língua portuguesa “o papel
de mediadora da formação do povo” (FREIRE & FAUNDEZ, 1985, p.125). No processo
de descolonização política e cultural, “deveria chegar o momento em que o
português seria estudado nas escolas como língua estrangeira privilegiada” (Id.
Ibid.).
Os idiomas não são veículos neutros para os seres humanos transportar ideias,
supostamente oriundas de fora de seu âmbito, a outros seres humanos. Eles
determinam o modo de pensar, em seus
limites e possibilidades. A alfabetização e formação do povo na língua do
colonizador, em vez de resolver as desigualdades sociais, seguramente tenderá a
aprofundá-las. Tal opção permitiria prever “nas mãos de quem estará o poder
amanhã” (Id. p.127). “Há uma contradição entre a afirmação da autonomia
cultural e a negação da língua” (FREIRE, 2004, p.53).
Em relação ao povo da Guiné-Bissau,
Freire enfatiza que o português não é a sua língua. Lutando por preservar sua
identidade cultural, durante séculos, as populações da Guiné-Bissau resistiram
“a ser ‘tocadas’ pela língua dominante... O uso de suas línguas deve ter sido,
por muito tempo, um dos únicos instrumentos de luta de que dispunham. Não é de
estranhar, pois, que os próprios animadores culturais destas mesmas zonas
dominem precariamente o português” (FREIRE & FAUNDEZ, 1985, p.129). Na
medida em que a língua portuguesa não faz parte da prática social das grandes
massas populares da Guiné-Bissau, o grupo étnico que fala e pensa em língua mancanha, por exemplo,
usava algumas palavras do português com outra significação. Portanto, insistir
no ensino de português significaria “impor à população um esforço inútil e
impossível de ser alcançado” (Id. p.130). Já a viabilização do crioulo como
língua nacional resultaria que o português, no sistema educacional do país, teria
de assumir “a pouco e pouco, o seu estatuto real – o de língua estrangeira”
(Id. p.131).
Instigado por Faundez, Freire estende às
tecnologias produtivas plurais o que ele chama de “tese da unidade na
diversidade”, um esquema de diálogo intercultural, anteriormente exposto no que
atine à relação entre idiomas. Justifica-o com base no princípio dialético e
antiburocrático de que devemos nos orientar por uma visão globalizante do
processo de transformação (Id. p.138-140).
- A
utopia da unidade na diversidade e a memória histórica na educação popular
O empoderamento das minorias
oprimidas, especialmente as de corte étnico-idiomático, pode ser incrementado
pela concretização de projetos de “salvaguarda da memória histórica e social,
que numa cultura preponderantemente ou exclusivamente oral, se encontra nas
lembranças dos mais velhos” (Id. p.148). A memória oral deve ser respeitada e a
introdução da palavra escrita nas culturas de memória oral tem que ser bem
feita e com um total respeito à oralidade (FREIRE, 2004, p.30). Sob essa
inspiração, deve ser feita a “recuperação dessa memória através do recolhimento
de estórias populares, de mitos da cultura, em textos organizados com o respeito à sintaxe popular” (FREIRE &
FAUNDEZ, 1985, p.149). Repetidas vezes, Freire chama atenção para a diferença
entre a “sintaxe ou organização popular do pensamento” e o modo intelectual de
pensar dos educadores: a formação destes leva-os a descrever mais o conceito do
objeto, ao passo que, na sintaxe popular, “se descreve o objeto e não o seu
conceito” (FREIRE, 2003, p.56-58).
Referindo-se às culturas tribais do
interior brasileiro, Freire falou em junho de 1982: “Toda cultura de memória
oral está repleta de estórias e provérbios, está repleta de metáforas. Essas
são as características fundamentais de culturas como estas” (FREIRE, 2004,
p.43). E acrescentou: como nessas culturas “não há nenhum jogo conceitual”, a
formação se dá através estórias, de modo que elas têm um papel pedagógico
imenso (Id. p.44). A partir disso, Freire sugere que essas estórias e
provérbios sejam recolhidos e registrados no original, lado a lado com a
tradução portuguesa, para serem usados no diálogo com os grupos indígenas a fim
de melhorarem a compreensão de suas respectivas culturas (Id. p.44-45).
A respeito da história oral, a
conversa entre Paulo Freire e Antonio Faundez conduz à distinção conceitual entre
“lendas e mitos”, de um lado, e “testemunhos históricos daqueles que sofreram a
colonização em sua própria carne”, de outro (FREIRE & FAUNDEZ, 1985,
p.150). Acrescentaram a isso uma reflexão sobre a importância, para a
reconstrução das nações colonizadas, da investigação do conhecimento biológico do
povo, “estudando as plantas que o povo utiliza, tanto na medicina como na
alimentação...”, para servir de base para as políticas públicas de nutrição e
saúde (Id. p. 150-152).
- A
multiculturalidade como desafio sociopolítico de grupos movidos pela
utopia da unidade na diversidade
Em Política e educação, Freire diz constatar que (a) “as diferenças
interculturais existem e apresentam cortes: de classe, de raça, de gênero e,
como alongamento destes, de nações”, e que (b) “estas diferenças geram
ideologias, de um lado, discriminatórias, de outro, de resistência”. Ele
sublinha que “na medida em que as relações entre estas ideologias são
dialéticas, elas se interpenetram. Não se dão em estado puro e podem mudar de
pessoa a pessoa. Por exemplo, posso ser homem, com sou, e nem por isso ser
machista. Posso ser negro, mas em defesa de meus interesses econômicos,
contemporizar com a discriminação branca” (FREIRE, 2003, p.31). Para compreender as ideologias, é necessário
analisar como se relacionam com o poder e a sua falta. Ademais, elas se
expressam na sintaxe e semântica da linguagem, nas formas concretas de atuar,
de escolher, de valorar, de vestir, de dizer olá na rua (Id. p.31-32).
Relativamente a tais relações constatáveis, com intenção político-pedagógica,
Freire projeta o sonho de um mundo menos arestoso, em que não haja mais
discriminação nem rebelião ou adaptação, mas “unidade na diversidade” (Id.
p.32.36).
Em Pedagogia da Esperança, Freire critica quem concebe a
multiculturalidade como “algo natural e espontâneo” (FREIRE, 1992, p.157). A
multiculturalidade só pode ser constituída “na liberdade conquistada, no direito assegurado
de mover-se cada cultura no respeito uma da outra, correndo o risco livremente
de ser diferente, sem medo de ser diferente” (Id. p.156). A multiculturalidade
só pode resultar, sempre de modo inacabado, de “decisão, vontade política,
mobilização, organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns”, que
demandam “uma certa prática educativa coerente com esses objetivos” e que, por
sua vez, “demanda uma nova ética fundada no respeito às diferenças” (Id.
p.157). Os grupos culturais movidos pela utopia da unidade na diversidade devem
aprender a suportar as tensões que emergem das relações democráticas, nunca
prontas e acabadas, em cujo seio eles se expõem uns aos outros em sua diferença
(Id. p.156). Referindo-se à sociedade norte-americana, a reflexão freireana
sublinha que as culturas das chamadas minorias não se esgotam nas questões de
raça e sexo, mas demandam que se compreenda nelas o corte de classe: “além da
cor da pele, da diferenciação sexual, há também a ‘cor’ da ideologia” (Id.
p.156). E isso deve ser levado a sério! “Sexo só não explica tudo. A raça só,
tampouco. A classe só, igualmente”; por isso, devemos cuidar para não cair na “tentação
de reduzir a luta inteira a um desses aspectos fundamentais” (FREIRE, 2003, p.95).
Acresce que, com vistas à construção
do projeto histórico da unidade na diversidade, “não basta reconhecer-se,
alegremente, que nesta ou naquela sociedade, o homem e a mulher são de tal modo
livres que têm o direito de até morrer de fome ou de não ter escola para seus
filhos e filhas ou de não ter casa para morar” (FREIRE, 1992, p.157). A utopia
da unidade na diversidade deve ser buscada para além das sociedades de classe,
cujas estruturas produzem o fracasso dos indivíduos e grupos minoritários e, ao
mesmo tempo, geram a ideologia que imputa aos próprios fracassados a
responsabilidade por sua desgraça (Id. p.157-158).
No processo de criação histórica
dessa utopia, as chamadas minorias devem “reconhecer que, no fundo, elas são a
maioria.
O caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar as semelhanças entre si e não só as diferenças e, assim, criar
a unidade na diversidade” (Id. p.154). Ao contrário, quanto mais negros/as,
chicanos/as, homossexuais, homeless,
operários/as se assumem como minorias e se fecham umas às outras “tanto melhor
dorme a única e real minoria, a classe dominante” (Id. p.153). Para a tristeza
de Freire, a seu ver, os movimentos anti-racistas e anti-sexistas sérios dos
Estados Unidos, de 1973 a 1992, mantiveram sua posição de recusa ao conceito de
classe social “na análise compreensiva, de um lado, do fenômeno, do outro, da luta
contra ele”, o mesmo ocorrendo em relação à tese da unidade na diversidade (Id.
p.158).
Pelo viés dos grupos engajados na
concretização histórica do diálogo intercultural, cumpre problematizar o
conceito de “preservação da cultura”. Tratando das culturas indígenas, por
exemplo, Freire é enfático: o problema “não é o de preservar a cultura
indígena, mas o de respeitá-la. Aí é outra coisa. O problema é o do respeito à
cultura indígena e não de conservá-la em ilhas, em guetos histórico-culturais”
(FREIRE, 2004, p.71). Em se tratando de respeitar determinada cultura, a tarefa
consiste em “reconhecer as idas e vindas do movimento interno da própria
cultura. E contribuir para esse movimento interno...” (Id. Ibid.). O educador
democrático-popular se incumbe de ver com
os educandos qual é a orientação desse dinamismo interno, auscultando com eles
“o que é que pode ocorrer na
intimidade da própria cultura” (Id. Ibid.). A atenção voltada às possibilidades que vão sendo esboçadas
pela práxis social que dinamiza a cultura, tanto a partir de dentro como a
partir de fora, será respeitosa à medida que apreende quais são os sonhos (possíveis) do grupo cultural e
quem é o sujeito decididor desses sonhos (Id. p.73). Esse é um desafio tremendo
e fascinante para os educadores, à medida que, no trabalho pedagógico, educadores
e educandos são cada vez sujeitos de culturas distintas que interagem, com
sonhos e modos de pensar diferentes. O problema se concentra no modo como
concretamente construímos a relação entre elas. E este problema nos remete,
mais uma vez, aos princípios político-filosófico-pedagógicos de Pedagogia do oprimido.
- Conclusão
Nos termos de Nancy Fraser e de Axel
Honneth, levar a sério os sonhos dos grupos culturais oprimidos implica articular
a luta por reconhecimento com a luta pela distribuição dos bens materiais e
simbólicos socialmente produzidos. Ainda que não use esta terminologia, Paulo
Freire desaprova a luta por direitos culturais sem a luta (de classe) pela
distribuição justa da riqueza. Por isso, deve-se tomar como inadequadamente
encaminhas e conduzidas as lutas isoladas por direitos culturais sem a abertura
a outros grupos e sem, ao mesmo tempo, levar em consideração o movimento
histórico da sociedade como um todo em busca da justiça social. Freire admite
que o que oferece em Pedagogia do
oprimido é uma estrutura teórico-metodológica geral que requer, em cada
caso, ser aplicada criativamente aos contextos específicos. Mas essas reinvenções
crítico-criativas são possíveis precisamente porque os parâmetros gerais para
trabalhar com questões de opressão (como fenômeno social e existencial) exigem
“um profundo respeito pelo outro no decorrer das linhas de raça e gênero” (FREIRE,
2001, p.61). Efetivamente, eu estava “mais preocupado com os oprimidos enquanto
classe social” (Id. p.62). Mas isso não significa que “estivesse ignorando as
muitas formas de opressão racial que sempre denunciei e contra as quais sempre
lutei, mesmo enquanto criança” (Id. Ibid.).
À medida que apreendeu as
especificidades da opressão e, ao mesmo tempo, os reducionismos teóricos que
separam raça, gênero, etnicidade e outros marcadores sociais, Freire passou a
defender o que chamou “a tese fundamental da unidade na diversidade” (Id.
p.63). Enquanto cada especificidade da opressão se mantém dentro de sua
situação histórica, aceitando o perfil que foi criado pelo opressor, fatalmente
continuará se debatendo em esforços sem eficácia política. A luta efetiva que
pode conduzir à vitória está condicionada concretização histórica do lema “unidade
na diversidade”.